Objetivo para esta atividade
* Ler e entender narrativa de ficção
Para minha avó, o cemitério é um ótimo lugar onde se pode passear tranquilamente.
Todos os domingos ela passeia por lá e se dedica a ler as inscrições dos túmulos (coisas terríveis, do tipo "Não te esquecemos", "Descanso eterno" ou "Teu amado esposo e filhos rezam sempre pela tua alma"). Comentava estes epitáfio como se fossem manchetes de revistas e se sentia como peixe fora d'água. Mas é preciso compreender que a maior parte dos amigos de minha avó está ali ("descansando em paz", como ela diz), de modo que ela não pode ter medo da sua... como dizer? Suas futuras companhias.
Quando às vezes lhe fazemos acusações de morbidez, ela se defende, nos fazendo recordar com razão que no cemitério não há desocupados com motos ruidosas nem papeis espalhados pelo chão, nem garotas faendo escândalos com risadas tolas. Além disso, minha avó fica encantada com flores, e o cemitério está cheio delas levadas pelas famílias dos mortos às suas tumbas.
Algumas vezes minha avó traz um ramo pra casa.
Eu detesto que ela faça isso (você gostaria de ter flores de mortos na sala?) e se a condeno é porque não conheço nenhuma outra avó de meus amigos que faça algo parecido, mas ela responde que é uma pena que se estraguem ali, no sereno, e que de qualquer maneira só colhe as dos túmulos mais ricos, que têm muitas e que ficam igualmente secas. (Eu creio que no fundo ela tem um pouco de inveja de saber que nunca terá um túmulo grande e coberto de flores por onde poderia passear eternamente).
No domingo passado ficou jogando cartas com as amigas (que ainda estão vivas), se atrasou e ficou um pouco tarde, e quando a acompanhei ao cemitério estava começando a anoitecer. tentei convencê-la de que era melhor deixar para outra semana porque achava falta de respeito incomodar os mortos àquela hora.
__ Nem pense nisso! - respondeu minha avó. - Os primeiros domingos do mês são os melhores. as pessoas acabam de receber seus salários e trazem ramos maiores e mais bonitos. Não posso perder isso.
Quando chegamos, o coveiro (velho amigo de minha avó, já que se viam muito) estava fechando o portão. Eu me senti salvo, mas não contava com a mútua confiança que tinham. Minha avó insistiu e ele deixou a chave, pedindo que fechasse o cadeado ao sair e que escondesse a chave sob determinada pedra.
As coisas sempre podem sair pior do que se imagina, mas... Eu e minha avó estávamos sós no cemitério, às sete da noite, e começou a chover a cântaros; fomos obrigados a nos refugiar no primeiro jazigo com cobertura que encontramos.
Fiquei olhando a chuva com desgosto, enquanto minha avó inspecionava o jazigo. Pensei tê-la ouvido murmurar alguma coisa feia (ela frequentemente fala sozinha), mas não dei importância porque a única vez que eu disse alguma coisa, me respondeu que os velhos têm direito de fazer o que quiserem sem medo de cair no ridículo; que a todo mundo parece normal que um velho fale pelas paredes, e o terrível seria se eu falasse, porque me tomariam por louco.
Agora eu estava muito entediado e não tinha nenhuma graça continuar ali. Mas minha avó falava sozinha sem parar.
Voltei-me para pedir-lhe que se calasse quando vi com espanto que não estava falando só, mas sim com um morto bem morto, branco e meio decomposto, cuja visão me gelou o sangue nas veias.
Peguei uma pedra no chão e o ameacei na tentativa de atrair minha avó para junto de mim para que ficasse a salvo, mas ela me olhou como se eu tivesse perdido o juízo.
__ Mas o que você está fazendo, João? - me perguntou. - Tenha um pouco de educação senão o Sebastião pode se assustar.
Tinha graça! Eu é que ia assustar aquele ser repugnante!... E ele... na verdade é que me olhava muito transtornado, como se não entendesse por que eu havia de querer golpeá-lo. Então minha avó nos apresentou formalmente.
__ Sebastião, este jovenzinho impulsivo é meu neto João. João, este é Sebastião, um velho, muito velho amigo.
O cadáver me estendeu a mão (coisa que me deu bastante nojo), mas eu a retirei e... não sei nem como me vi descendo a cripta do jazigo, onde uma quantidade de anciões mortos (todos "velhos" conhecidos de minha avó) estavam reunidos alegremente, dançando sobre as lápides como se fossem uns jovens e não veneráveis esqueletos.
Esta que é a parte boa em estar morto, diziam, não sentimos as dores da artrite, não nos cansamos e não temos que nos arrumar para sair.
Quando parou a chuva, percorremos o cemitério, enfeitado com as melhores coroas da temporada. "Teus amigos que não te esquecem", dizia a faixa que uma caveira passou sobre a cabeça de minha avó como se fosse um colar. Eu ganhei um grande buquê de flores (uma homenagem por ser o mais jovem da festa) e a ela recomendaram que morresse logo para que não precisasse ir clandestinamente às reuniões.
Depois daquela noite, quando vejo filmes de terror não posso deixar de rir. Meus amigos pensam que sou um sujeito duro e um pouco estranho, que não se deixa impressionar por nada. Se eles soubessem...
Múmias e outros mortos. Maria Mañeru. Rio de Janeiro: Record, 2002. p 38-44
A breve Biografia desta autora, será postada em outro momento. Assim que o for, deixaremos o link aqui para que se possa acessar. Pedimos que aguardem.
1. A história é narrada em 1ª ou 3ª pessoa? Qual a primeira palavra do texto que comprova sua resposta?
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2. Quem é esse narrador?
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3. Releia o trecho:
Todos os domingos ela passeia por lá e se dedica a ler as inscrições dos túmulos (coisas terríveis, do tipo "Não te esquecemos", "Descanso eterno" ou "Teu amado esposo e filhos rezam sempre pela tua alma").
Agora responda:
a) Qual é a função das aspas nas frases?
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b) A quem essas frases são dirigidas?
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c) O narrador chama as inscrições dos túmulos de "coisas terríveis". Por quê?
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d) Por que o narrador afirma que os mortos visitados seriam as "futuras companhias" da avó?
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4. No sexto parágrafo, o narrador conta que a avó ficou jogando catas com as amigas "que ainda estão vivas". Interprete o trecho marcado pelas aspas.
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5. Justifique o título do texto.
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6. No texto, qual a função dos vários trechos entre parênteses?
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7. No final do segundo parágrafo, as reticências (...) interrompe a frase, indicando que o narrador
a) não tinha intenção de terminar a frase
b) foi subitamente interrompido em sua fala
c) ficou em dúvida sobre como se expressar
d) não desejava continuar a história
8. Marque a alternativa que, no contexto, apresenta o significado do adjetivo "repugnante", utilizado no 16º parágrafo
a) decomposto
b) nojento
c) transtornado
d) ameaçador
9. Releia o segundo parágrafo. Nele, "epitáfio" significa:
a) vaso de flor em túmulo
b) manchete de revista
c) inscrição em laje de túmulo
d) oração para os mortos
Respostas:
1. A história é narrada em 1ª pessoa. A palavra é minha
2. O narrador é um menino chamado João.
3. a) É indicar que as frases são citações.
b) Aos mortos que jazem nos túmulos.
c) Talvez por ele ser muito jovem para morrer, ou, por se comover com a dor causada pela perda dos entes queridos.
d) Porque depois de morta, seria enterrada no mesmo cemitério onde eles jaziam.
4. Além das amigas vivas, a avó tinha amizade com os mortos que visitavam no cemitério.
5. É a frase escrita na faixa que a caveira passou por cima da cabeça da avó.
6. Indicar explicações ou reflexões do narrador.
7. Alternativa C
8. Alternativa B
9. Alternativa C