UM CONTO, DUAS VERSÕES
De uma mesma situação cômica (um bicho preguiça com pressa) nascem duas histórias e um estimulante exercício de comparação de linguagem.
O filho da filha do bicho-preguiça
O bicho-preguiça estava parado quieto, trepado no galho da árvore. Sua filha estava trepada quieta, parada num outro galho. De repente, ela disse:
– Pai, estou sentindo uma dorzinha esquisita dentro na barriga. Acho que vou parir logo.
Tempos depois, o bicho-preguiça desceu da árvore e ficou pensando. Mais tarde, saiu andando devagar, quase parando. Foi procurar uma parteira.
Foi, foi, foi. Andou, andou, andou. Seguiu, seguiu, seguiu.
No meio da viagem, o bicho-preguiça tropeçou numa pedra e machucou o dedinho do pé. Ficou um pouco nervoso:
– É isso que dá andar nessa pressa danada!
E seguiu, seguiu, seguiu. E andou, andou, andou. E foi, foi, foi.
Acabou chegando na casa da parteira. Passou um tempo, o bicho-preguiça bateu na porta e disse:
– Dona parteira, é urgente. Vamos lá em casa que o filho da minha filha está pra nascer.
A parteira era bicho-preguiça também. Dias depois, abriu a porta devagar e respondeu:
– Calma aí que eu já estou indo!
O tempo correu e bem mais tarde os dois partiram.
Foram indo, foram indo, foram indo. Foram seguindo, foram seguindo, foram seguindo. Foram andando, foram andando, foram andando.
No fim, quando chegaram de volta, escutaram uma barulheira. Eram os filhos do filho da filha do bichopreguiça brincando devagarinho no terreiro.
(AZEVEDO, Ricardo, Contos de bichos do mato, Ática, 2005)
A preguiça
Estando a filha com dor de parir, saiu a preguiça em busca da parteira. Sete anos depois ainda se achava em viagem, quando deu uma topada. Gritou muito zangada:
– Está no que deu o diabo das pressas...
Afinal quando chegou em casa com a parteira, encontrou os netos da filha, brincando no terreiro.
Do escrito para o escrito
por Maria José Nóbrega
Com isso, um número maior de leitores pode apreciá-las: encantar-se com elas, emocionar-se com elas, divertir-se com elas.
É o que fez o escritor Ricardo Azevedo, o entrevistado desta edição de LeituraS, com a divertida O filho do filho da filha do bicho-preguiça que reconta A preguiça, uma versão do conto recolhida por João da Silva Campos. A ação que deflagra o conflito na história é a iminência do nascimento do filho da filha da preguiça. Está lançado o mote. O conto brinca com a oposição criada pela proximidade do parto e a demora no atendimento. Extrai humor da hipérbole, isto é, do exagero.
Ricardo de Azevedo, sem perder a piada, escolhe narrar tudo muito devagar, devagar, devagarzinho – em câmera lenta – o que deixa o texto muito mais engraçado, não apenas pelo que acontece na história, mas também pelo jeito como a conta. Veja alguns dos recursos que ele emprega:
*Usa e abusa de repetição: Tal pai, tal filha
O bicho-preguiça estava parado quieto, trepado no galho da árvore. Sua filha estava trepada quieta, parada num outro galho.
Três vezes três:
Foi, foi, foi. Andou, andou, andou. Seguiu, seguiu, seguiu.
E seguiu, seguiu, seguiu. E andou, andou, andou.
E foi, foi, foi.
Foram indo, foram indo, foram indo. Foram seguindo, foram seguindo, foram seguindo. Foram
andando, foram andando, foram andando.
Eram os filhos do filho da filha do bicho-preguiça...
Três vezes três:
Foi, foi, foi. Andou, andou, andou. Seguiu, seguiu, seguiu.
E seguiu, seguiu, seguiu. E andou, andou, andou.
E foi, foi, foi.
Foram indo, foram indo, foram indo. Foram seguindo, foram seguindo, foram seguindo. Foram
andando, foram andando, foram andando.
Eram os filhos do filho da filha do bicho-preguiça...
*Usa muitas expressões que mostram a passagem bicho-preguiça ante a urgência: lento, muito
lento, lentíssimo, como convém a preguiças e a histórias engraçadas:
Tempos depois, o bicho-preguiça desceu da árvore e ficou pensando.
Mais tarde, saiu andando devagar, quase parando.
Passou um tempo, o bicho-preguiça bateu na porta...
Dias depois, abriu a porta devagar...
O tempo correu e bem mais tarde os dois partiram.
O conto que já era pra lá de engraçado, ficou mais engraçado ainda! É isso que dá escrever
sem essa pressa danada!
:: FONTE: REVISTA LEITURA'S (MEC)
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